ENTREVISTA CONCEDIDA A MARCELO ARIEL em www.teatrofantasma.blogspot.com,
julho de 2007
1) Qual seria a função social do escritor em uma sociedade desigual e injusta como a do Brasil, com milhões de analfabetos reais e funcionais? Existe uma função social da literatura?
Em que pese Ezra Pound, um dos poetas de minha predileção, sustentar que cabe ao poeta a responsabilidade de manter a sanidade e a eficiência da língua-linguagem, sob pena de a cultura de uma nação decair, tudo isso me parece excessivamente utópico e romântico. O poeta age sobre a linguagem, isto é, trabalha-a de modo subversivo ou inventivo (ou pelo menos deveria). Isso quer dizer que muitas vezes a verdadeira obra poética (porque transgride a norma) não esclarece coisa nenhuma, pelo contrário, não raro nos leva a um beco sem saída. Por outro lado, o filósofo Wittgenstein já disse que os limites ou os contornos do mundo são determinados pelos limites da nossa linguagem. Assim, se se quiser mesmo cavar alguma utilidade para a poesia, talvez essa afirmação forneça os insumos necessários para uma cobrança moralizante. Não pretendo conquistar um séquito de leitores para o meu trabalho. Espero que minha poesia suscite leituras controversas. E isso não tem muito a ver com quantidade.
2) A literatura (em especial a poesia) feita hoje no Brasil é capaz de dar conta da realidade cultural do País ou estaríamos todos nós presos em guetos culturais específicos, cada um com uma visão da realidade que nos cerca, como naquela conhecida piada dos cegos tentando descrever um elefante (na piada, um dos cegos afirma segurando na tromba, que o elefante é como uma cobra, outro segurando nas pernas que o elefante é como uma árvore, e nenhum consegue realmente apreender o fenômeno elefante porque não pode enxergar o elefante propriamente dito)?
A realidade é um acordo - sempre prestes a se romper - entre uma série de pontos de vista conflitantes. Com efeito, alguns não enxergam um palmo diante do próprio nariz. Antigamente se dizia que o Brasil ficava de costas para o Brasil. Isto é, o litoral desviava o olhar do sertão ignoto. Aos poucos a chamada periferia começa a se converter numa espécie de “atitude” que interessa inclusive ao mundo do playboy “consumidoido”. A estética da chanchada ainda persegue a cultura brasileira, mas agora a chanchada é cínica e perversa. Foi-se a ingenuidade naïf. A literatura dificilmente “dá conta” do real. Esta discussão é tão remota quanto a fundamental Poética de Aristóteles que, aliás, já disse tudo sobre o assunto.
3) Fale um pouco sobre seus livros e sobre o projeto editorial diferenciado do último, que vejo como uma versão daquilo que o grande Itamar Assumpção quis dizer quando gravou o seu As próprias custas S.A.?
Meu primeiro livro chama-se Homem ao Rubro (1983), seu projeto gráfico tenta imitar a estética dos livros da Noa Noa, do editor-tipógrafo Cleber Teixeira, de Florianópolis. Depois vieram, Disco (1986), em parceria com Hingo Weber, metapoemas fundindo Dante e poesia concreta; Puya (1987), poemas de linguagem rarefeita; Kânhamo (1987), poema visual; Vá de Valha (1992) e Confissões Aplicadas (2004), este pela editora Ameopoema, nesses livros experimento poemas longos e uma pagada mais discursiva. Todos são livros magros, exceto o Confissões, que tem cento e poucas páginas. E agora publico No Assoalho Duro que, ao lado de Solecidades, plaquete de Ronaldo Machado, inauguram as atividades da editora Éblis (www.editoraeblis.zip.net). Eu e o Ronaldo pensamos a Éblis como uma editora voltada não só para a publicação de poesia, mas também como um canal para a divulgação de traduções de poesia e para a reflexão crítica inventiva tendo o poema como foco. Nossa intenção com a editora, como está dito em nosso editorial, é pôr em circulação a poesia que não se contente com a corriqueira satisfação da moeda literária vigente, que cai, ora com a cara cult, ora com a coroa provinciana. A editora Éblis pretende jogar sobre a mesa uma outra moeda, revendo assim a economia poética contemporânea a partir de outros valores. Assim, se conseguirmos publicar, por exemplo, poetas como Paulo de Toledo, inédito em livro, Ademir Demarchi, Oliveira Silveira e Cândido Rolim, entre outros, nossa editora terá cumprido sua função.
4) Você pretende um dia viver de literatura, ou também nutre esse que era o sonho de Lima Barreto?
Sim. Hoje em dia, os cursos que ministro já têm uma participação importante no orçamento familiar. Mas, ainda falta um bom caminho pela frente. A poesia, a rigor, ainda não rende muito. E em contrapartida não me interessa escrever prosa de ficção. Uma vez me pagaram 250,00 reais para que um poema integrasse uma antologia. Doze versos cuja elaboração me custaram as unhas da carne. As editoras, quando pagam, pagam pouco por poema.
5) O que é essencial para que algo possa ser definido como um grande poema? Ou um grande texto?
Sua capacidade de desbordar as margens do provincianamente tolerável, do esteticamente tolerável.
6) Na sua opinião existe uma cisão entre o mercado editorial e a literatura, quando entro nas livrarias, percebo que a questão mercadológica é colocada num grau de importância maior, o marketing literário e não o talento e a consistência determinam o que vai ser colocado em evidência e conseqüentemente "vender" e ocupar o espaço dos cadernos de resenhas, concorrer nas loterias literárias e etc. Como você vê essa problemática?
Infelizmente essa cisão se torna menor a cada momento. Cada vez mais, os poetas “antenados”, os contistas de segunda mão, parecem necessitar das credenciais do mercado livreiro-editorial. Seus interesses coincidem com suas crenças. E todos se acomodam bem às regras de eficiência e competência exigidas por esse sistema literário, representação especular, embora com suas singularidades, das imposturas e imposições sócio-econômicas abrigadas sob o arco ideológico do livre mercado. Parece inacreditável, mas a literatura participa do conjunto das manifestações artísticas, sim. E isso causa um sério embaraço à maioria das grandes editoras. A literatura degenera quando dá as costas ao seu impulso de arte.
julho de 2007
1) Qual seria a função social do escritor em uma sociedade desigual e injusta como a do Brasil, com milhões de analfabetos reais e funcionais? Existe uma função social da literatura?
Em que pese Ezra Pound, um dos poetas de minha predileção, sustentar que cabe ao poeta a responsabilidade de manter a sanidade e a eficiência da língua-linguagem, sob pena de a cultura de uma nação decair, tudo isso me parece excessivamente utópico e romântico. O poeta age sobre a linguagem, isto é, trabalha-a de modo subversivo ou inventivo (ou pelo menos deveria). Isso quer dizer que muitas vezes a verdadeira obra poética (porque transgride a norma) não esclarece coisa nenhuma, pelo contrário, não raro nos leva a um beco sem saída. Por outro lado, o filósofo Wittgenstein já disse que os limites ou os contornos do mundo são determinados pelos limites da nossa linguagem. Assim, se se quiser mesmo cavar alguma utilidade para a poesia, talvez essa afirmação forneça os insumos necessários para uma cobrança moralizante. Não pretendo conquistar um séquito de leitores para o meu trabalho. Espero que minha poesia suscite leituras controversas. E isso não tem muito a ver com quantidade.
2) A literatura (em especial a poesia) feita hoje no Brasil é capaz de dar conta da realidade cultural do País ou estaríamos todos nós presos em guetos culturais específicos, cada um com uma visão da realidade que nos cerca, como naquela conhecida piada dos cegos tentando descrever um elefante (na piada, um dos cegos afirma segurando na tromba, que o elefante é como uma cobra, outro segurando nas pernas que o elefante é como uma árvore, e nenhum consegue realmente apreender o fenômeno elefante porque não pode enxergar o elefante propriamente dito)?
A realidade é um acordo - sempre prestes a se romper - entre uma série de pontos de vista conflitantes. Com efeito, alguns não enxergam um palmo diante do próprio nariz. Antigamente se dizia que o Brasil ficava de costas para o Brasil. Isto é, o litoral desviava o olhar do sertão ignoto. Aos poucos a chamada periferia começa a se converter numa espécie de “atitude” que interessa inclusive ao mundo do playboy “consumidoido”. A estética da chanchada ainda persegue a cultura brasileira, mas agora a chanchada é cínica e perversa. Foi-se a ingenuidade naïf. A literatura dificilmente “dá conta” do real. Esta discussão é tão remota quanto a fundamental Poética de Aristóteles que, aliás, já disse tudo sobre o assunto.
3) Fale um pouco sobre seus livros e sobre o projeto editorial diferenciado do último, que vejo como uma versão daquilo que o grande Itamar Assumpção quis dizer quando gravou o seu As próprias custas S.A.?
Meu primeiro livro chama-se Homem ao Rubro (1983), seu projeto gráfico tenta imitar a estética dos livros da Noa Noa, do editor-tipógrafo Cleber Teixeira, de Florianópolis. Depois vieram, Disco (1986), em parceria com Hingo Weber, metapoemas fundindo Dante e poesia concreta; Puya (1987), poemas de linguagem rarefeita; Kânhamo (1987), poema visual; Vá de Valha (1992) e Confissões Aplicadas (2004), este pela editora Ameopoema, nesses livros experimento poemas longos e uma pagada mais discursiva. Todos são livros magros, exceto o Confissões, que tem cento e poucas páginas. E agora publico No Assoalho Duro que, ao lado de Solecidades, plaquete de Ronaldo Machado, inauguram as atividades da editora Éblis (www.editoraeblis.zip.net). Eu e o Ronaldo pensamos a Éblis como uma editora voltada não só para a publicação de poesia, mas também como um canal para a divulgação de traduções de poesia e para a reflexão crítica inventiva tendo o poema como foco. Nossa intenção com a editora, como está dito em nosso editorial, é pôr em circulação a poesia que não se contente com a corriqueira satisfação da moeda literária vigente, que cai, ora com a cara cult, ora com a coroa provinciana. A editora Éblis pretende jogar sobre a mesa uma outra moeda, revendo assim a economia poética contemporânea a partir de outros valores. Assim, se conseguirmos publicar, por exemplo, poetas como Paulo de Toledo, inédito em livro, Ademir Demarchi, Oliveira Silveira e Cândido Rolim, entre outros, nossa editora terá cumprido sua função.
4) Você pretende um dia viver de literatura, ou também nutre esse que era o sonho de Lima Barreto?
Sim. Hoje em dia, os cursos que ministro já têm uma participação importante no orçamento familiar. Mas, ainda falta um bom caminho pela frente. A poesia, a rigor, ainda não rende muito. E em contrapartida não me interessa escrever prosa de ficção. Uma vez me pagaram 250,00 reais para que um poema integrasse uma antologia. Doze versos cuja elaboração me custaram as unhas da carne. As editoras, quando pagam, pagam pouco por poema.
5) O que é essencial para que algo possa ser definido como um grande poema? Ou um grande texto?
Sua capacidade de desbordar as margens do provincianamente tolerável, do esteticamente tolerável.
6) Na sua opinião existe uma cisão entre o mercado editorial e a literatura, quando entro nas livrarias, percebo que a questão mercadológica é colocada num grau de importância maior, o marketing literário e não o talento e a consistência determinam o que vai ser colocado em evidência e conseqüentemente "vender" e ocupar o espaço dos cadernos de resenhas, concorrer nas loterias literárias e etc. Como você vê essa problemática?
Infelizmente essa cisão se torna menor a cada momento. Cada vez mais, os poetas “antenados”, os contistas de segunda mão, parecem necessitar das credenciais do mercado livreiro-editorial. Seus interesses coincidem com suas crenças. E todos se acomodam bem às regras de eficiência e competência exigidas por esse sistema literário, representação especular, embora com suas singularidades, das imposturas e imposições sócio-econômicas abrigadas sob o arco ideológico do livre mercado. Parece inacreditável, mas a literatura participa do conjunto das manifestações artísticas, sim. E isso causa um sério embaraço à maioria das grandes editoras. A literatura degenera quando dá as costas ao seu impulso de arte.
Comments
feliz em descobrir este teu espaço, depois de conhecer um pouco do teu trabalho através do overmundo. Gostei muito da entrevista. A resenha que Ronaldo Machado faz do teu último livro, eu já havia lido no overm.
Que consigas viver cada vez mais da poesia.
Um abraço,
Letícia.