Skip to main content

palavra parelha: um belo quarentão

Anibal Beça


Roland Barthes, no seu hoje clássico Le plaisir du texte, à certa altura escreve mais ou menos o seguinte a respeito dos nossos dilemas no concernente à fruição: somos depositários de uma tradição que tende a repudiar o hedonismo, e exceto por algumas vozes marginais, o prazer resta normalmente subvalorizado, reduzido, ou “desinflado” como refere Barthes. Em contrapartida nossos esforços intelectuais e emocionais são aplicados “em proveito de valores fortes, nobres: a Verdade, a Morte, o Progresso, a Alegria...”. Ainda segundo o teórico francês, o mais próximo que conseguimos chegar do prazer — e disfarçando vestígios de culpa —, é sempre através de um disfêmico elogio ao Desejo. O “Desejo teria uma dignidade epistêmica”. Por essas e outras, Palavra parelha (Edições Galo Branco, 2008) de Anibal Beça, volume de poemas que reúne cinco livros novos produzidos dentro de um arco de quarenta anos, revela-se um objeto verbal sob medida para dar materialidade a esta divisa de Barthes: “O prazer do texto é isto: o valor passado ao grau suntuoso de significante”.


Com efeito, ao longo desse livro-suma, o poeta amazonense consagra o prazer da e na linguagem. Anibal mobiliza os significantes de maneira a criar um verdadeiro strip-tease nos significados reféns do “automatismo psíquico”. Vários poemas encenam uma “ablução sem culpa”, banho macio de água morena onde a carne se remorde a contrapelo de qualquer remorso, e se franqueia à fruição do leitor, que projeta sua subjetividade num encontro metalingüístico-existencial deflagrado pelas ranhuras do texto. Soma e sumo de vida/linguagem.

Ao lado de versos quase alambicados, tamanho é o gozo com a metrificação, deparamos aqui e ali decassílabos brancos, mas já numa métrica mais afeita à fala. Isso também é perceptível em seus outros livros, isto é, a lição do modernismo está plenamente incorporada à sua poesia (coisa que não é comum de se verificar na prática contemporânea circunstante), no sentido em que o versilibrismo descartou ao metrônomo a burocracia do ritmo. O sentimento de metrificação de Anibal Beça é mais de canção do que dessa expertise neo-parnasiana de que se vangloriam muitos poetas recentes. Anibal abre as alas-páginas de sua partitura cheia de versos bons de falar em voz alta. O poeta não despreza o valor da moeda da fala concreta, cotidiana: “Um filtro transmudando muitos ventos/ Mas sempre alimentando na fatura/ Um pé de verso antigo sem assombros/ Uma pá revolvendo caligramas/ Sem esquecer a cifra do meu tempo:/ / Humor o chiste a gíria tudo conta/ No canto do falar cotidiano”.

Em Palavra parelha, Anibal Beça afivela com moderação a persona do poeta-crítico — na derradeira seção, “Cantata de cabeceira”, conhecemos sua personalidade multifária. Ele pode ser valeriano, curtir um rock leminskiano, mudar de cor como um Rimbaud em fuga, etc. Mas, felizmente, no seu mundo-linguagem tem uns igarapés que levam às terras do Sem-fim do mundo amazônico, tem o “barro das metáforas” e o barro ribeirinho, e isto: “E assim me assumo pedra diferente/ Calcinado de múltiplas facetas:/ Concreto fui na práxis da sintaxe/ Viajei linossignos e haicais/ Namoro o instinto que Breton me deu/ E junto o sonho ao barro das metáforas”.

E, além de tudo — ou por isso mesmo —, o visto e o imaginado confluindo para a carne equívoca do poema como memória de eros, seduzido “arquivivo”: “Tatuagens tomadas ao acaso/(...) a dúvida vestindo/As várias personagens nesse enredo”. Nesse belo livro quarentão, Palavra parelha, conseguimos testemunhar em cada poema, em cada verso ou linossigno, a vida inteira do poeta Anibal Beça passada ao lado das palavras. Cosido, casado com elas.

Comments

Anibal Beça, uma estrela de passagem
http://olhosdefolhacintiathome.blogspot.com/2009/08/anibal-beca-o-amazonense-sempre-lamento.html

ou
http://www.overmundo.com.br/banco/anibal-beca-poeta-amazonense-lamento-1391946-2582009

'Até a minha casa dói'
Cintia Thomé

Popular posts from this blog

nepotismo!

Amaralina Dinka, minha filha caçula de 11 anos, escreveu seu primeiro poema e me pediu para publicá-lo aqui no blog. Ela quer receber críticas e comentários. A MOCINHA FELIZ Eu acordei bem sapeca Parecendo uma peteca Fui direto pra cozinha Tomar meu café na caneca Na escola eu aprendi A multiplicar No recreio fui brincar Cheguei em casa Subi a escada Escorreguei, Caí no chão Mas não chorei Na hora de jantar Tomei meu chá Na minha janela Vi uma mulher tagarela.

Eduardo Costley-white e o sentimento de Moçambique

Eduardo Costley-white Conheci o poeta Eduardo Costley-white em São Paulo, se não me engano no ano de 1987, durante o I Encontro Internacional de Escritores Negros , governo Franco Montoro. Graças a esse acontecimento que não nos entediou de modo nenhum, mantivemos um contato diário ao longo de quase uma semana levando a cabo uma divertida troca de ideias e de poemas. De imediato me identifiquei com Eduardo e com Marcelo Panguana (outro grande escritor moçambicano da delegação), principalmente pelo fato de sermos da mesma geração. Hoje vejo nisso a razão pela qual não encontrei a mesma satisfação no contato com a delegação angolana que, não obstante ser composta por alguns poetas importantes (Manuel Rui e Ruy Duarte de Carvalho, por exemplo), era formada, grosso modo, por um pessoal de uma geração uns vinte anos mais velha do que a nossa. Como normalmente acontece, depois de encontros entusiasmantes e cheios de expectativas, o repentino afastamento é engolido pelo contínuo da

de lambuja, um poema traduzido

Ivy G. Wilson Ayo A. Coly Introduction Callaloo Volume 30, Number 2, Spring 2007 Special Issue: Callaloo and the Cultures and Letters of the Black Diaspora.To employ the term diaspora in black cultural studies now is equal parts imperative and elusive. In the wake of recent forceful critiques of nationalism, the diaspora has increasingly come to be understood as a concept—indeed, almost a discourse formation unto itself—that allows for, if not mandates, modes of analysis that are comparative, transnational, global in their perspective. And Callaloo, as a journal of African Diaspora arts and letters, might justly be understood to have a particular relationship to this mandate. For this special issue, we have tried to assemble pieces where the phrase diaspora can find little refuge as a self-reflexive term—a maneuver that seeks to destabilize the facile prefigurations of the word in our current critical vocabulary, where its invocation has too often become idiomatic. More critically, we