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dois poemas de manuel bandeira




O bicho


Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.



No poema “O bicho”, Manuel Bandeira recorta a silhueta de um bicho “Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos”. Num exame mais cerrado, descarnado de qualificativos poeticamente corretos, o poeta começa a ajustar o foco da sua máquina verbal de produzir efeitos, e numa progressão de enquadramentos, partindo desde o mais difuso até o mais nítido e duro, nota que “O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato.” O desenlace do poema, que não chega a surpreender - acho inclusive que essa possibilidade nem é a que mais interessa a Manuel Bandeira -, nos diz que o bicho “era um homem”, ou que o bicho fora um homem. Com efeito, o poeta não se surpreende com tal metamorfose regressiva (notar a degradação do sujeito e o desafeto que infunde, escalonados na simbologia prosaica dos animais escolhidos: o cão, o gato, o rato, como degraus por onde desce, indo do animal civil ao mais incivil, e não sendo sequer a sombra do último). Essa espécie de transmigração asquerosa, não sobressalta o poeta, pois a locução “meu Deus”, do verso final, espremida entre vírgulas e quase opaca, à boca pequena, não chega a indicar uma franca desilusão, mas sim um amargo reconhecimento acerca da nossa capacidade para a dissipação trágica que secunda a entropia com que nos debatemos.


Poema tirado de uma notícia de jornal



João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.



Passos da cruz do personagem do “Poema tirado de uma notícia de jornal” (cabe lembrar que sua fatura é de meados da década de 1920, período em que o ideário estético modernista enfrentava resistência de lado a lado): o nome paródico, João Gostoso, é uma alcunha, talvez de um bamba do samba, um apelido que indica em retrospectiva uma biografia de suburbano conquistador amoroso; João Gostoso é pobre e mora no morro; João Gostoso é um homem só, no momento não é temido nem estimado; João Gostoso dá cabo da própria vida. O desenho rítmico do poema de Manuel Bandeira apresenta uma interessante variação e poderia ser desmembrado em quatro blocos: (1) o primeiro verso onde João Gostoso entra em cena, verso largo, informativo, cuja aparente platitude é verticalizada com uma série de incrustações aliterantes em / r / alveolares que também se duplicam em / rr / velares, conferindo um índice de vibração a uma frase musical que devido ao comprimento poderia resvalar em frouxidão: “...eRa caRRegadoR de feiRa-livRe e moRava no moRRo da Babilônia num baRRacão sem númeRo”, e de modo suplementar destaca-se ainda a progressiva seqüência paronomástica: MoRava/ MoRRo/ núMeRo ; (2) o segundo verso que inicia com “Uma noite...”, e evoca uma preparação, um augúrio, a prefiguração do acontecimento, João Gostoso tomou a sua decisão, agora ele inspira; (3) a pequena enumeração em andamento binário ascendente, um acento fraco seguido de um forte, “Bebeu/ Cantou/ Dançou”, samba-canção-síntese onde João Gostoso, num derradeiro frenesi, sobe, fica alto, para depois cair; finalmente (4) a morte por água, os círculos concêntricos provocados pelo baque surdo, pelo fecho quase à maneira de um haikai — me perdoem os puristas da forma clássica japonesa.

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