A tradição poética pode ser interpretada como uma infinitude de vozes em atrito que, em fim de contas ou a certa distância, resulta em harmonia, ou melhor: sugere uma coesão dinâmica onde verticalizações sincrônicas restauram o acervo da diacronia para as contingências do agora-agora. Cada poeta ou movimento, na conciliação de suas contradições, representa, portanto, um duplo abreviado de semelhante tradição. Qualquer experiência de linguagem é sempre irredutível e dura em seu centro, nenhuma delas se deixa comparar com facilidade. Mas, o mais das vezes, alguns dos seus funcionários — aqueles que só trabalham em benefício de si próprios — se esforçam em fazer com que elas se aniquilem umas às outras. Pois, cada poeta com sua obra se refere sem reservas (seja como continuação, seja como ruptura) à tradição, e não raro a reivindica apenas para si (seja como seu crítico, seja como seu guarda-costas). Do mesmo modo, jamais conseguirá admitir sua partilha sem anular-se. Entretanto, esse poeta virtual assina inadvertidamente o contrato do seu declínio ao buscar ou ao alardear a morte de todas outras linguagens com as quais, talvez contra a sua vontade, estivera entretecendo alguma forma de interlocução.
Não se quer aqui fazer a defesa da indiferenciação hipocritamente tolerante, nem de suportar a figura do sujeito que prefere se ajustar às regras contemporâneas deixando de se situar porque parece estar claro, para ele, que foram cancelados os dilemas poéticos e ideológicos. A copiosa produção literária dos últimos tempos, conformada à escala e à escola do mercado, impôs uma trégua cínica aos conflitos e combates que até há bem pouco tempo geravam ao menos precipitações, ou seja, movimentos. Havia um contínuo e provocante abandono dos territórios conquistados. As quizilas, as réplicas e tréplicas inerentes ao pathos convivial — contraparte necessária ao pathos da distância constitutivo da linguagem da poesia — nos condenam a uma atitude de análise em que o importante é nos sentirmos implicados quer nos logros, quer nas pertinências que denunciamos.
De outra parte, a insistência um tanto dalibanesca na demonstração de que a poesia está em crise (em sentido fraco), pode não passar de um truque de propaganda daqueles que, a partir do quadro de desolação que pintam, pretendem recompô-la desde seus aposentos presunçosos onde se encontra, podemos supor, um computador conectado.
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abraços
Jorge dos Santos