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Um comentário a caminho para Os nove pentes d’África


Gostei da narrativa de Os nove pentes d’África, de Cidinha da Silva, da história, do modo como é contada. Mas sei que gostaria mais ainda se fosse mais curta; se ganhasse a forma de um conto. O conto se abre, ou se cerra, a uma tensão que em muitos casos nem se resolve. Naturalmente, não foi essa a intenção da prosadora. Respeito. Não sou um adepto fundamentalista da síntese e nem da escassez que, em poesia, entram na conta das suas virtudes; mas o conto tem algo que falta ao romance ou à novela, ou aos textos que ficam no meio do caminho. Isto é, o conto põe a descoberto parte apenas do que de fato interessa (o resto é o seu avesso, que é o subentendido, que é a alusão), ou como talvez dissesse Pound caso estivera se pronunciando não a respeito da poesia, mas da prosa, que o conto não perderia tempo com itens obsoletos: ele seria e é essências e medulas. Pelo fato de Os nove pentes d’África, não obstante o que escrevi mais acima, ser econômico, esteticamente comedido no uso da cor (é mais desenho que pintura), não há sobras em sua estrutura, ele se faz de alusões e de elisões, inclusive aquelas tributárias da fala natural, do coloquial; nestes pontos, ponto para a obra de Cidinha da Silva. Se a novela fosse um pouco mais longa poderia enveredar na direção desses problemas típicos da prosa: a eloqüência, a retórica, a piscadela de olhos para o leitor visando a sua hipnose, o seu mero entretenimento, etc. Mas, se Os nove pentes d’África se resolvesse em conto (me desculpe insistir nisso!), do meu ponto de vista, renderia mais. Mesmo assim, gostei. Tenho que lidar com o que texto de fato contém e é, não com o que ele não pode ser.


Além disso, acho importante anotar, mesmo que de passagem, a mistura de registros que Cidinha opera, e sem cair em exageros estilísticos. Por exemplo, quando em determinados momentos sua narrativa faz referência à Woodstok, Máskara, “super-mega-blaster-liso-demais”, elementos da cultura Black-pop, administrados na perspectiva de um apetite pan-semiótico, ou sincrético. Ou quando o bordão do “cada um no seu quadrado” surge de modo bastante natural e verossímil na fala de um dos personagens. Verossímil, porém jamais servil ao realismo enquanto comportamento literário (situação que alude a uma contradição entre termos). Os nove pentes d’África, nos situa em um intervalo de pensamento entre o tempo e a cultura presentes e um clima entre onírico e lírico, em sentido forte. Lírico no sentido em que, por exemploo, Manuel Bandeira é lírico. Cidinha da Silva faz o leitor negociar uma memória de mitos e de nostalgias orgânicas afro-brasileiras que remetem ao mundo do artesanato e seus filosofemas com os simulacros satíricos da nossa realidade mediada cada vez mais pela internet, pelo mundo virtual, etc, sem que isso nos leve a crer que estamos diante de um texto que faz um elogio acrítico dos modos político-culturais de agora-agora.

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