trabalho do artista Jorge dos Anjos, MG
PRIMÓRDIOS DO NOVO
Cândido
Rolim e Ronald Augusto(*)
Se
o enredo não vale por si só, nada como pisar nos calos de questões já
superadas. De tempos em tempos, ocorre a
um crítico ou artista reclamar aos brados um gênio, uma épica, uma raridade. À
primeira vista, mais um paisano enfadado com a mesmice. De outra parte, embora
pareça difícil não julgar ociosa a questão em si, e sem pretensão de construir
justificativa válida, abordaremos, sim, o assunto, e, quem sabe, com
equivalente enfado estetizante.
Julgar que tudo já foi dito ou feito
não é achar que a realidade se deixa esgotar por meia dúzia de sofismas ou uma
única sorte? Para muitos soa razoável a
pretensão de somente realizar algo sob o argumento de que ninguém jamais o fez.
É possível um texto original? Não raro, a absoluta novidade se apresenta aos
nossos olhos como ilegível, imprecisa, vaga, talvez por isso mesmo mais
sedutora e fascinante. Mas, a rigor, esse texto invulgar tão reclamado teria
que nascer antes da língua, esse “sistema de citações” segundo Jorge Luis
Borges. Portanto, considerando a propensão da linguagem-objeto para gerar
outras linguagens, ela mesma não pode ser jamais um ponto intransitivo. Mas
então onde se daria essa aprimorada impostura senão em um espírito que ignora
as impossibilidades concretas?
A idéia de
originalidade, a crença de que é possível “inventar a partir do zero”, ou da
tela em branco, na verdade sempre esteve relacionada, ainda que de modo subjacente,
ao conceito de mimese, ou seja, a
linhagem - deixemos de lado, por
ora, a imagem de um big bang criativo-informacional -, ou o continuum das obras poéticas se estabelece por um
tensionamento permutacional entre “cópia e original”. A cópia, como topos, representa o insumo necessário para a figuração do
original, e a recíproca pode ser reclamada aqui sem receio. Inventores e
diluidores mantém uma relação inextrincável, do tipo antropofágica. Estranha
cadeia alimentar cuja metáfora apropriada seria a da serpente que morde a
própria cauda.
Sob esse prisma, é possível
afirmar que a originalidade estrita jamais se dá; é provável que esteja na
ordem do mito. Isso porque todo exercício esconde uma combinação mínima de
conhecimento, reconhecimento, insuspeitas reincidências e acaso. Não dá para medir, senão sob a intervenção
cruel de uma inquietação (ou satisfação) subjetiva, o quanto de original se
aplica em um processo estético, seja porque tal juízo geralmente é negativo
(põe-se de lado o “já gozado”), seja porque “criar” não seria só inventar:
somente quando o meio que se usa para essa elaboração é mínimo, algo próximo ao
“nada”, quer dizer, ao in-forme, podemos falar de “criação”, o que diz muito
pouco com o novo, tendo em vista que toda obra tem à frente um largo caminho de
provação, canonização, desvios, leituras e revogações compulsórias. Não por
acaso a idéia de um deus que do nada faz jorrar galáxias (Fiat lux!) é ainda
tão sedutora. Parece ser menos arriscado denunciar em alto e bom som o que nos
soa repetição, ou submissão ao peso intolerável da influência das grandes
obras, do que apontar a vereda inventiva e não percorrida que tais ou quais
poemas eventualmente experimentam. A obra original, se fosse mesmo possível,
não caberia na moldura de nenhum repertório mapeado seja pelo uso, seja pela
recusa. Nosso repertório (compósito de transculturações) mostra-se bastante
útil apenas para dimensionar aquelas criações que se lançam desde de
plataformas conhecidas da tradição. O repertório que a obra original traz em
seu bojo se projeta para o futuro como um vir-a-ser, um pano de fundo virtual.
Não há como afirmar/aferir em definitivo a originalidade de um texto, pelo
simples fato de que todo repertório, isto é, este complexo de imagens e idéias
acumulado ao longo de uma série de experiências históricas, são como óculos
assentados sobre o nariz. Vemos as coisas através deles, e a idéia de tirá-los,
para perscrutar o que quer que seja além de sua aparente ilegibilidade, nunca
nos ocorre. Os óculos com que poderíamos apreciar o poema original ainda não
foram inventados. E talvez jamais o sejam. A obra original impõe uma pergunta a
um tempo inelutável e redutora: “O que é isso?” Se não houver resposta, ou se
socraticamente tivermos ciência da nossa ignorância, estaremos, talvez, diante
desse mito. O que pode surtir de um tal poema edênico, sem memória ou urdidura?
“Nada ou quase uma arte” (Mallarmé).
Mas convém desconfiar que na base de
toda invenção dorme uma respirante arcanidade que não costuma alardear o rastro
de suas peripécias. E, de resto, reconhecer também originalidade em lances não
necessariamente inéditos, em certas radicalidades não menos artificiais que
disfarçam bem seu ponto de partida, em fatos que não se submeteram completamente
ao olvido ou dele surgiu por obra do acaso. De certa forma, o novo se constitui
desde a revisão ou recorrência de insumos informacionais relegados à sombra
pelo gosto canonizado de um período dado. Junto com os nossos precursores,
inventamos e transladamos o novo para a economia estética do nosso tempo. O
assomo de uma linguagem inédita resulta de uma costura enviesada pelas lacunas
herdadas de uma tradição sovina, com vistas a reconfigurar a padronagem dessa
verdadeira “colcha de retalhos” que, bem ou mal, nos abriga a todos; um
contrabando daquelas realidades peneiradas para restarem - numa espécie de entressonho - como marcos de interdições. Enfim, é importante avaliar o risco de se
insistir no novo, sem se dar conta de que se repete tão somente um plano de
intenções.
Ao rompermos com a primordialidade, nem sempre
deparamos o novo. Por quê? Talvez porque a face deste está voltada para aquela.
Logo, impossível chegar a essa margem seminal, única, preciosa, sem aquiescer
em nenhum momento com algum conhecimento suspeito.
Por pura ironia, o conceito de
criação incompatibiliza o mundo com a idéia de um marco inicial, quanto mais
venha este da manufatura de um ser primeiro ou de um feixe de lances-acaso.
Então, não seria melhor desconfiar que aquela predestinação artificiosa do
artista decorre de um grosseiro erro de avaliação, quase sempre divorciada das
fecundas repetições e da tutela do artifício? Aliás, uma das contribuições
importantes da teoria da informação é aquela que detecta na manipulação
inteligente da redundância - compreendida como estilema - um espaço possível para a erupção do dado
original. A rima, por exemplo, é repetição-redundância de fonemas de onde se
extrai informação estética nova a cada verso.
A todo ato que se quer original
corresponde uma percepção, uma leitura primeira, um ver virgem, impossível
pré-visão inventiva. Ora, o que conhecemos e falamos por nós mesmos, a não ser
coisas apreendidas compulsoriamente quando algo nos intriga? Não vêm daí a voz,
o cio, o vagido, a dor, o balbucio e o conceito? Que teríamos a dizer se a
língua desde antes já não viesse curtida nos trâmites arcaicos? São realidades
posteriores (o homem, por exemplo) que dão algum sentido vivo às coisas
enquistadas num tempo sem espaço. E o que se constata é estarem - construção e
percepção do construído – sob o atrito constante desses rudimentos.
A idéia de obra original,
para não descartar de vez esse volúvel
termo, forma-se tanto a partir de um parâmetro artístico já constituído,
como em decorrência de alterações subjetivas no ser que a apreende. Além disso,
vale repetir, seria válido dizer-se que a originalidade depende somente das
metamorfoses de um esforço perceptivo, se é sempre uma consciência suspeita, a posteriori,
que salva ou condena a obra de um autor num tempo dado; é um olho contemporâneo
que lê uma vida passada, e isto já o desautoriza a qualquer definitivo juízo ou
apropriação? E não terá sido apenas o giro estético do olho o verdadeiro
responsável pelo corte, sem o qual toda tentativa de fissura no molde estético
(cânone) seria em vão?
Por via desses e de outros
artifícios e malogros, a arte acaba se inserindo no teatro das hegemonias.
Deixando de lado a possibilidade de infinitas leituras e re/invenções, se por
ventura não se detectam em determinada manifestação artística indícios de
mudança, avanço ou genialidade, ou se fecham os olhos à dignidade das
construções marginais e aos ofícios alternativos, tanto ou mais criativos, isto
se deve a que outras oficinas da experiência histórica estão, neste exato
momento, manipulando o imaginário em proveito de alguma estética prevalente. O
homem, por não saber direito quando e onde está, torna-se figurante de muitas
contemporaneidades. Conforme dito, em relação à arte, é quase impossível
definir-se o que permanece ou o que faz permanecer: se os efeitos de uma
certeza confortante (que oportuniza provisoriamente a fruição), se a excitação
de um campo que permite a sugestiva passagem da literalidade da obra (seu
dis-curso) e de seus múltiplos (nunca derradeiros) sentidos.
De
qualquer forma, a originalidade que se busca é, ainda, um vício arcaizante.
Deseja-se ardentemente o novo atrelando-se o objeto estético ao plano da
sucessividade. Mesmo assim, desatentos ao que se ultrapassa, daríamos conta da
sutil metamorfose do mesmo? Seria assim tão fácil salvar uma obra de seu
contínuo e desgastante processo de ressurreição?
Afinal, ao passo que o antigo
fornece elementos para sua negação, ao mesmo tempo instaurando o risco contínuo
da eterna re-configuração de seu dogma, o novo se revela menos pelo esforço
intencional de revogação pura e simples com o antigo, que por um modo
insuspeito deste se repetir; ser-se não sendo aos olhos de uma indisciplinada e
criativa leitura. Não por acaso fala-se muito desse fenômeno que desloca a
criatividade do eixo da fatura para o plano da leitura-invenção, agente das
múltiplas sobrevidas da obra. O novo, efetivamente, dá as costas ao passado,
mas tão-só porque ele se projeta para frente, para um futuro metafórico. Nós é
que desde a nossa condição histórica é que podemos apenas ler o novo como
diferença relativamente às faturas do que passou. Se não acharmos no passado,
no antigo, índices interpretativos para o que se nos depara como novidade, tal
carência pode servir de medida para a afirmação de que estamos diante de um
“signovo”. O
fazer, o saber e o julgar implicados na mira da leitura crítica devotada ao
entendimento da dicotomia entre novo e velho, devem ser colocados numa
perspectiva provisória. Um bom poema não admite solução. A crítica não tem que
resolver nada. A etiqueta de novo ou velho, que cedo ou tarde venha a ser
aplicada a determinado poema, não invalida as demais fraturas interpretativas
que ele carrega embutidas em seu tecido verbal. Infelizmente, a conclusão sobre
o que faz, mesmo, a beleza difícil do poema bom, o mais das vezes, resta
embrulhada em nosso nojo ou em nosso devotamento com relação ao maior ou menor
pendor de novidade/tradição que tal poema possa conter.
Tirante a impertinente tutela das
estruturas que de forma subliminar entranham-se onde e quando menos se espera,
o que sobrevive como original na obra? Sua cota de delírio? É certo que não,
pois a esta jamais foi dado ocorrer com razoável margem e tempo para a dúvida
ou “fé crítica”.
Desta
forma, ou denominamos original a um processo de tradição ao mesmo tempo rompida
e re-alimentante, ou corremos o risco de devolver ao artista faculdades
impróprias do homem, como por exemplo, a demiurgia que a crítica pós-moderna
tanto laborou para retirar do processo da poiesis. Sim, talvez não tenha sido a
originalidade que desapareceu, mas a idéia de originalidade que se imiscuiu na
dinâmica da re-elaboração. Artimanha da tradição: um conceito mal transmitido,
um avesso, um ruído, tudo desbanca o original. Se por um instante suspendemos a
perversa sede de invenção - ela mesma um cânone - veremos que o desejo de
originalidade disfarça mal as cíclicas visitações do paradigma. Invenção-montagem?
Criar seria surpreender o esquecimento ou repeti-lo?
É
que, sem querer, veneramos ainda o espontaneísmo solitário, o lume, as safiras
do achado. Nunca nos entregamos sem reservas a uma realidade movediça, em
constante tensão com as forças do uso e o vício da pertinência. O original
surge então como um ruído na tradição, anomalia, aborto, aberração. E isto não
rechaça o “não sei quê de intransferível” que nasce e morre com a obra, átimo
de fruição, cuja força propagadora é diretamente proporcional à sua estranheza
ou mesmo devido a ela. Assim, poder-se-ia dizer que toda obra criativa está
condenada a algum índice de novidade, pois cada poema inaugura e exaure uma
chance de linguagem. Isto é, como todo indivíduo, o poema carrega em seu centro
aquele bit informacional que o singulariza diante dos seus pares. Ele é
irrepetível.
Original
seria o insuficiente estágio onde se encontram as larvas da linguagem, seus
redutos in/formantes e de/formantes. Deve ser aí, nesse ponto hesitante, nunca
completamente deflagrado, rastro de mundo recém criado, em algum vértice
pulsante de nossa consciência exausta de nomear e ver, que surgiria a visão
particularizada (redentora?) da obra, do sujeito e do mundo que os
circunscreve, sem nada dever ao já visto ou feito.
Por um breve instante a
arte se extravia de todos os referenciais de que um dia se nutriu e logo assume
de novo a forma de uma tradição prestes a se romper, ou em vias de plasmar-se,
guiando-se por transvalores (Nietzsche) e padrões ainda não abonados. Num
desses lapsos surgem os oportunistas e a cruzada em demanda de gênios, o fastio
estético, os acadêmicos bocejos. Infelizmente, nossa tendência ao “bom senso”
medianeiro corre lado-a-lado com aquela preguiça que constitui uma espécie de
“saída de emergência” da qual lançamos mão sempre que somos atocaiados pelo
inesperado, pelo novo. Um por todos, todos por um, torcemos o nariz: “isso são
excentricidades”. E voltamos ao que não nos é estranho.
Esse comportamento é cruel,
sobretudo com os vivos. Impossível estética, inservível tanto para eventual
emancipação estética com o passado, quanto para a afirmação no presente, tempo
que nunca se decide. Essa obra de arte, inderivada, ereta, nascida entre dois
silêncios, funda uma trágica experiência que nem ela suspeita, eis que o
conhecimento é também um doloroso e traumático diálogo com uma arcanidade muda
e sem rosto que nada nos responde ou, quando muito, balbucia. E é no vácuo
dessa resposta, nessa provisória ausência de fisionomia que ousamos interpor
algo saído de um novo projeto estético.
O que conforta, permite-se
dizer, é que o homem, sem a contingência do novo e do antigo, pode figurar a
ida para o futuro ou para o passado, com liberdade para tocar os extremos da
dispersão, oscilando do nascente ao poente como um pássaro sem predominância.
(Porto Alegre,
inverno de 2000, Fortaleza/Porto Alegre, verão/2007)
_______________________________________________________________________
(*) Cândido Rolim, poeta, crítico, autor de Pedra Habitada (2002),
Exemplos Alados (1998), Fragma (2006) e outros. Ronald Augusto, poeta,
músico e crítico de poesia, autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Vá
de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007).
Comments