Nessa etapa de minha leitura à Tramas de orvalho (Editora Movimento, 2007), obra da poeta Deisi Beier, noto e anoto que trata-se de um poema-livro, não apenas de um livro enfeixando poemas, nem de uma mera recolha ou seleta recuperada à gaveta de guardados. Isto é, há nesse livro de estréia - e de uma trajetória em perspectiva -, uma vontade de coesão, inclusive no que toca à sua dicção.
Tramas de orvalho se revela um poema longo parcelado num inventário-discurso de compósitos imagéticos, um verdadeiro cine-sintagmas. Ou ainda, um poema em processo, expondo as marcas sucessivas de contentes metamorfoses, que, às vezes mais, às vezes menos, alcançam a sintonia fina da sua imprecisão virtuosa em muitas estações ou cenas desse gesto textual que se inaugura.
Uma ou outra passagem se perde por entre os dedos da poeta, custo pago a um trabalho compositivo que tem algo de heurístico. Um tatear amoroso pelas ranhuras ainda frescas de uma palavra que empreende a viagem em busca de um silêncio cego, não obstante o viés pictórico. Mas, o que interessa é que em boa parte dessa persistente textura de imagens, deparamos mais acertos do que excessos. Tramas de orvalho propõe uma espécie de espeleologia de linguagem através de um particular prazer neográfico no trato com a metáfora.
Deisi Beier se sai bem com as diversas soluções metafóricas mobilizadas em seu livro, tanto que por meio delas consegue incorporar a persona da “catadora/ das surpresas”. Perturbações de sentido incrustadas em complexos visuais, e transportados, por sua vez, aos versos, à enunciação de uma fala em simulação de transe. No mesmo poema, de onde extraí a imagem apresentada acima, o vocábulo “mutante” ocupa, em termos icônicos, um espaço significante e indicial no branco da página (pág. 68). Antes, na pág. 56 o poema já lançara “no ar a senha” do livro: uma “profusão de formas”. E formas que falam.
E é, portanto, a partir dessas formas em movimento que o poema-livro conquista a “interação entre opostos”. As “águas escuras” e desejosas das seduções tangendo essa lira de sinestesias presentificada nas metamorfoses orgânico-verbais de Tramas de orvalho. Uma estréia que merece leituras interessadas.
Excertos de poemas de Tramas de orvalho
“o fogo líquido/ passou pela cabeça/ as bolhas de sabão/ se tornaram pérolas/ em cada canto há ostras/ ideogramas de noite” (...); “como o pensamento/ abre espaço para novas delícias” (...), pág. 30.
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“ar// luz nas transparências/ translúcidos/ vidro/ solidário/ uma garrafa/ e o azul” (...), pág. 44.
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(...) “no jardim/ embrulhado para presente/ o brilho// aos convidados/ envelopes vermelhos em movimento” (...), pág. 52
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(...) “úmidos cogumelos crescem nos troncos/ não há cortinas” (...); “morrer: vazio de improvisos”, pág. 66
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