A FESTA DA FALA
por Sandro Ornellas, poeta e professor de literatura na Universidade Federal da Bahia.
Finuras da linguagem, peripécias poéticas, elipses do pensamento, farsas da experiência, memórias do corpo. Este poderia ser uma espécie de resumo-bala do livro CONFISSÕES APLICADAS, o quarto do poeta, músico, letrista e crítico de poesia gaúcho Ronald Augusto, editado no ano de 2004 pela AMEOP – Ame O Poeta Editora –; mas também desejo aproximar dessa listagem-resumo, desse inventário-suma do livro de Ronald a mais incontornável contemporaneidade, como uma expressão-síntese do resumo-bala, do inventário-suma. O poeta, desta feita, manipula sério-jocosamente alguns dos signos e valores da cultura de hoje, sem apelar para a casmurrice maniqueísta. Aliás, seu rosto na capa do livro me passa a ambígua impressão de um misto de ironia e despojamento.
A atenção aos signos que passeiam pelas infovias do mundo não se limita, entretanto, apenas ao que sugere a composição da capa. É dono, Ronald Augusto, de uma sensibilidade e de uma perícia técnica que fazem sua poesia se movimentar nas folhas sequenciadas do livro, produzindo um deslizar das linhas e preenchendo estranhamente as suas páginas. Já na primeira estrofe do primeiro poema, “Uma duas palavras”, uma consciência metalingüística diferenciada se elabora, incorporando e estilizando o léxico, os sons e os ritmos da coloquialidade: “ponho de lado escrever / um choro áureo um samba / alguém afirma que de uma / série de modestos lances / como p. ex. sacar do / bolso ou da pasta verde / a caderneta a caneta / sobre a mesa abrir uma em / punhar a outra e mais o pinho / soprar lá laiá laiá / pode surtir um objeto / melopercussivo de / resto confortável ao desejo”. Os versos encadeiam fragmentos sobre fragmentos, com o discurso quebrado por orações intercaladas, e só depois recomposto, como acompanhasse o fio da respiração, na verdade, fio de um pensamento-linguagem.
Há uma voz marcante e afirmativa – mas jamais ostensiva – nos textos poéticos de Ronald. Longe disso. A sua poesia não é a da primeira pessoa do singular, por mais que ele não se negue a utilizar o pronome; o que se estabelece nos seus poemas é o desdobrar de repercussões, de ecos, de sugestões, de índices do sujeito autoral, sua precariedade exposta precisamente na fratura que é a linguagem poética. Mesmo afirmativo Ronald não é óbvio nem banal na construção dos seus textos. Ele pede ao leitor para entrar na partida e preencher os espaços em branco, lacunas que se multiplicam, se substituem, como está dito na “orelha” do livro: “Não o leia como quem procura o que ele quer dizer. Entre na festa da fala dele. Entre de penetra, de gaiato. Ele não quer dizer: está dizendo o tempo todo”. Sua poesia quase inexiste sem a intervenção do leitor, sua afirmação exige um leitor que também se faça afirmativo diante do poema. É uma poesia sem concessões e sem soberbas; é, sobretudo, livre, como um pequeno livro de notações experimentais – “confissões aplicadas”.
Isso é visível principalmente no traço satírico-construtivista de seus poemas, que flertam com o perigo ao andar no fio da lâmina entre a esterilidade do ludismo verborrágico e a erótica vagabunda, que não abdica do corpo com uma história. Ronald pertence a uma antiestirpe – a dos espertos foliões populares que saqueiam textos, idéias, versos, signos, palavras, histórias e sentidos. São vários exemplos. Do poeta, destaco “Quem entende muito não pode viver muito”: “meu quimbundo e o de uma série / de vagabundos / intratáveis ao contrato / (...) / a língua do pensamento saiu de linha / sua redondeza / o desterro dos que adotaram uma linha / autopsicográfica de pensamento / (...) / intérpretes de um empíreo / muitos giros acima das últimas / letras da razão / (...)”; e também “Um corpo no de outro”, aqui citado integralmente: “meu rijo penduricalho rendendo malversação / missionária tanto quanto tu dona / de ranhuras oposta rendes – lábios hisurtos / semicerrados – desfazendo tela / às ocultas / e vem saliva insolvente imprecatória / deslizando em cima do púlpito / e público: / assoma um caralho sobre / par de pernas bailado pernicioso / ali uma xota escorchante e tenro / tornozelo dependurado com lassidão // tratados secções taras de / verbetes feito parasitas ervas / unanimemente falseando quando / concertaram estancar novo eros (ori / ) tachando-o de rito perdulário / terra o / cultivo que engendrou velidas / pastores missões rio acima quand`a frol / sazon á mete os cascos pelas mãos / ao se inclinar ora caprino ora / leigo sobre o sexo alheio”. A sátira no texto de Ronald assume as raízes da tradição ibérica, como está claro no poema anterior. As Cantigas de Escárnio e Mal-Dizer medievais são canibalizadas pelo ritmo dissonante e pela sintaxe arrevesada do poeta gaúcho. Não há o sentimento de se viver e escrever tardiamente, não há a angústia paralisante da influência, muito comum na atualidade: “os silabários caros ficaram pelos olhos da / e por conta dos poetas de ontem (...)” (“Antonio Marcos”).
O que move o texto poético de Ronald Augusto é o corpo, o mesmo corpo que ele estampa na capa e contracapas do seu livro aos olhares famintos de imagens, o mesmo corpo que se inscreve nas linhas, nas letras e nos espaçamentos gráficos dos seus poemas. Este não é um corpo sem história, mas que sabe que “inexistem informantes históricos desinteressados” (“Tecnologia e talento a serviço do porvir”), e também que o “Pesadelo da história” está vivo, e o acompanha – negro e poeta: “para o mundo não pisar às avessas / o negro que sou inclusive em alma / a custo forçaram a ver navios / (...) / pois muitos dormem temendo o escuro / crucifixo ao colo quase absurdo / os que ainda acordam vivos dão graças / sentem-se pagados a flor da raça”. Um mix de sátira e historicismo construtivista se conjugam em alguns textos, nos quais o corpo funciona como dínamo mobilizador do discurso poético em seus filamentos frasais e fragmentos de versos e palavras.
Ronald Augusto se encaminha pelo que Severo Sarduy denominou de “proliferação dos significantes”, cuja prática textual, no poeta gaúcho, vai da leitura sofisticada da poesia ocidental até a baixeza criativa da linguagem da rua. Os sentidos presentes na sua poesia se fazem híbridos na desmedida de sentidos, no excesso de referências. O poeta, no entanto, os faz também coabitar com pontos luminosos, signos de exatidão, iluminados na maior parte das tentativas. Os momentos em que o texto tropeça funcionam na minha leitura como espaços de interrogação abertos pelo poeta ao leitor, a pedra na preparação do feijão cabralino – é o fluxo interrompido que causa o estranhamento necessário à poesia e evita o reconhecimento fácil, a repetição padronizada do modelo, do grande Papai. Atento às formas coloquiais e cultas da palavra poética, Ronald é um poeta que sabe olhar não apenas para dentro das páginas dos livros, mas que, ao voltar-se para fora delas, consegue inscrever sua vivência múltipla em seus textos de formas tão íntimas quanto incisivas. A poesia brasileira renova seus sensíveis inventores.
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