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Treino com os portões abertos


O futebol é uma forma de arte? Não me refiro aqui ao lugar-comum controverso do “futebol-arte”; Pelé não era um “bailarino”, mas sim o grande designer da linguagem. A pergunta pode parecer um tanto estapafúrdia, mas se observarmos o panorama da arte contemporânea chegaremos à conclusão de que esta é uma ilusão possível. No belo filme Nós que aqui estamos por vós esperamos de Marcelo Masagão, há uma sequência onde a operação de edição do filme justapõe Fred Astaire e Garrincha dançando ao som da mesma melodia. Coreógrafos, ambos desenhavam movimentos.

A música popular moderna e contemporânea, num certo sentido, é uma invenção da televisão. Um amigo meu, temeroso da violência nos estádios, disse que o payperview é a solução, que ele consegue ver tudo em detalhes, e que “se sente dentro do estádio”. Mas a televisão, na presunção realista de arremessar a partida de futebol para o meio da sala do caro telespectador, acaba por cortá-la em mil fragmentos que jamais se unirão. Não sei se o futebol também é uma invenção da televisão ou se esta está mais para o seu túmulo.

O pessoal ligado ao teatro diz que uma apresentação teatral não cabe no vídeo, que perde quando é assim registrada, que é uma cerimônia ritual, que cada espetáculo nunca se repete, etc. Uma partida de futebol é também uma representação, uma encenação, um evento contínuo. Um rio que durante alguns momentos passa em nossas vidas. Como no teatro, no futebol também estão em causa o ensaio e o improviso. Entretanto, tudo nos faz crer que só em relação ao futebol não é possível pensá-lo fora da linguagem televisiva. Ah, sim, quase todos os times aliviam parte de suas dívidas com os contratos de televisionamento, me esquecera desse detalhe.

Quando vou ao estádio torcer pelo meu Internacional, constato o relativo silêncio dentro das quatro linhas. Claro que ao redor há a algazarra das torcidas, tem a batucada, etc. Mas em comparação com a riqueza de sons captados e ofertados pelos equipamentos de transmissão quer das rádios, quer das televisões, quando estamos ali na arquibancada, e a certa distância, tudo em campo parece mais quieto e íntimo. No entanto, o rádio de pilha é uma extensão do torcedor insano que comparece nos estádios. Não é mais possível fruir o futebol sem essas mediações.

O futebol é expressão da cultura popular brasileira. Se isso é verdade só mesmo a tradição oral, o anedotário dos boleiros, o gol mítico que perdura no boca-a-boca, etc, dariam conta então de representá-lo satisfatoriamente. Todos nós temos aquele amigo que insiste em narrar (ou evocar) suas façanhas de peladeiro na tentativa de compensar as ausências do narrador e do comentarista que, por certo, se testemunhassem os lances e a pintura do gol, ratificariam sua habilidade com a pelota.

O poeta William Carlos Williams (1883-1963) no poema “No jogo de beisebol”, escreve: “No jogo de beisebol a multidão/ é identicamente animada// por um espírito de inutilidade/ que a delicia — // todo detalhe emocionante/ da perseguição// e da evasão, o erro// o lampejo de gênio — // tudo sem outro fim que não a beleza/ o eterno (...)”. Isso é papo de poeta, mesmo. No futebol-commodity é besteira falar em “beleza” ou no “eterno”.

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