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no mês de cruz e sousa


O poema em prosa “Emparedado” de Cruz e Sousa (Evocações, 1898), vem angariando já há algum tempo uma variada recepção. Multiplicam-se defensores a adversários. De modo geral, as abordagens críticas reservam grande atenção - para o bem ou para o mal - ao espinhoso viés da identidade étnica. As análises investigam a emergência de um eu negro.

Mas, esse eu, conforme o foco interpretativo - mais ou menos sociológico nuns, mais ou menos psicanalítico noutros - às vezes será representado-denunciado como “complexado”, “dividido e conflitado”, etc., e em outras vezes como o de “um negro que assume a sua condição de negro”. O acadêmico Domício Proença Filho, por exemplo, no ensaio “A Trajetória do Negro na Literatura Brasileira”, incluído na Revista do Patrimônio Histórico, no 25 (1997), vislumbra no “Emparedado” o que julga ser uma verdadeira “confissão” que “não deixa margem a dúvidas” no concernente a uma “visão negativa” que o poeta supostamente nutriria a respeito de si mesmo; uma insatisfação com o próprio temperamento que, segundo Proença Filho, “entortava muito para o lado da África” (grifo nosso). De outra parte, Oswaldo de Camargo em O Negro Escrito (1987), atribui ao poema em prosa do poeta catarinense qualidades precursoras. Para Oswaldo, “Emparedado” abre caminho para um “grande número de escritores negros à busca de sua melhor expressão”. Finalmente, Zilá Berned no seu livro Poesia Negra Brasileira (1992), argumenta que Cruz e Sousa desvenda o tema da “raça de África, criticando a visão que a considera bárbara”. Ainda de acordo com a ensaísta e pesquisadora, o poeta “questiona o conceito de barbárie, devolvendo-o aos brancos a quem considera como ‘mais bárbaros' ”.

Não obstante essas visadas sobre o texto literário representarem o reconhecimento da legitimidade de uma série de questões suscitadas pelo espírito da contemporaneidade, cujo registro multicultural se associa a um relativismo hipoteticamente progressista, não resta dúvida de que, sob tal escrutínio, as linguagens analógicas tendem a ser reduzidas, por assim dizer, a um sistema autista que mais se presta à omissão alienada ou a reprodução dos discursos hegemônicos. Isto é, a palavra considerada como sobra e/ou sombra da ação. Despojo dos conflitos político-sociais.

No entanto, mesmo concordando com a eventual pertinência dessas pulsões ideológicas envolvidas na abordagem do texto criativo, não se pode perder de vista que isto ainda é uma parcela do problema ou um dos muitos meios de acesso ao indeterminado do discurso poético-literário. E a arte da invenção verbal não é outra coisa senão uma scriptio defectiva que se limita complementarmente com uma scriptio plena. Vale dizer, o fulcro, a razão de ser do poema não se estrutura em torno à reprodução cerrada de uma pretensa verdade referencial presentificada através de uma linguagem sem rasuras.

Comments

Eduardo Sena said…
É curiosa a abordagem unilateral que se faz do ódio.
Há uma consonância em condenar os sentimentos de revolta, as manifestações de descontentamento, considerando-os 'negativos'e estendendo este julgamento a quem os sentem.
É como se não existisse um elemento motivador, produtor de tais sentimentos.
Ouço a tonitroante cobrança relativa a 'assumir'posições, sem qualquer dimensionamento numa realidade hostil a estas mesmas posições.
Nas anãlises sobre o Dante Negro, precisamente, há que ter em vista que a sociedade é que apregoava a inferioridade do negro,e que colocava esse negro em condições degradantes. Não é fácil sentir-se satisfeito com algo, que todos a sua volta dizem não ser bom.
Também não se pode ser doce e amável, sendo excluído e condenado a viver subhumanamente.
O ódio deve ser cobrado de quem o dissemina. A revolta é de responsabilidade de quem a provoca, não de quem é submetido à injustiça.
Não há nenhuma dúvida de que Cruz e Souza se tinha ele mesmo, em alta conta. Teria ele alguma insegurança sobre sua competência, não teria chegado onde chegou, nem se atirado em busca do mais que aspirou alcançar.
Alguma revolta ou ódio, que possam ser percebidos entre seus versos,certamente não são fruto de qualquer recalque ou complexo, são apenas a manifestação, a expressão das verdades que espelham.

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