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um lance de baudelaire

baudelaire, charles, 1821-1867


Do observatório de sua mansarda, Baudelaire estreita a modernidade em suas mãos. Sobre o vazio papel defendido pela brancura, ele exercita a sós e ao mesmo tempo embebido dos estereótipos da rua (pois será preciso tropicar “sur les mots comme sur les pavês” para que suas alegorias se tornem menos rarefeitas), o mundo da sua linguagem que, não obstante seja crítica com relação aos discursos cobertos de “pátina poética”, simula evadir-se enquanto tenta recusar a linguagem tumultuária, “le bric-à-brac confus”, de um mundo de passagens, prosaico e derrisório que, a contrapelo, encontra nele o seu maior tradutor e comentarista:

Je ne vois qu’en esprit tout ce camp de baraques,
Ces tas de chapiteaux ébauchés et de fûts,
Les herbes, les gros blocs verdis par l’eau des flaques,
Et, brillant aux carreux, le bric-à-brac confus.

(...)

Paris change! mais rien dans ma mélancolie
N’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,
Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,
Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs
.

Só na lembrança vejo esse campo de tendas,/ Capitéis e cornijas de esboço indeciso,/ A relva, os pedregulhos com musgo nas fendas,/ E a miuçalha a brilhar nos ladrilhos do piso. (...) Paris muda! mas nada em minha nostalgia/ Mudou! novos palácios, andaimes, lagedos,/ Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,/ E essas lembranças pesam mais do que rochedos. (Trad. Ivan Junqueira)

Baudelaire não se projeta para o mundo, mas, antes, o sonha, a seu modo, nos transes da linguagem, na “oficina irritada” de uma percepção do poema derivada da metalinguagem de Poe, a partir do qual, no que toca a imperícia compositiva, não há indulto possível: “Only this and nothing more”. Como assinala Walter Benjamin, “Baudelaire conspira com a própria língua. Calcula seus efeitos a cada passo”, sabe que o incógnito e a ambigüidade são as leis não só da sua em particular, mas da poesia que se fez e se fará, antes e depois de suas flores deletérias. O cálculo e a meticulosidade do Baudelaire mestre (me sirvo do termo na acepção em que Ezra Pound o empregava), são galvanizados na figura do artífice trôpego por mauvaise conscience, o trapeiro que fuça o moderno da vulgaridade quotidiana sob os despojos da sua ideologia e do seu étimo, em busca de um eco épico, ou de um heroísmo seduzido pela entropia do trágico: “Temos aqui um homem: ele deve apanhar na capital o lixo do dia que passou, tudo o que a grande cidade deitou fora, tudo o que perdeu, tudo o que despreza, tudo o que destró, ele registra e coleciona. Coleciona os anais da desordem, o Cafarnaum da devassidão, seleciona as coisas, escolhe-as com inteligência; procede como um avarento em relação a um tesouro e agarra o entulho que nas maxilas da deusa da indústria tomará a forma de objetos úteis ou agradáveis”. O poeta-trapeiro baudelairiano mapeia a metrópole a partir de um escrutínio semiótico, seleciona e combina sintagmas-coisas, fragmentos, objetos-antiguidades colecionáveis, desentranhados pósteros à dissolução do presente, visando um poema, um modelo de sensibilidade, um sonho exato sob pórticos voluptuosos.

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