Skip to main content

biblioteca contemporânea, in progress




Aqui vão algumas anotações menos críticas do que retardatárias sobre livros de autores de agora-agora que tive a chance de ler, e que a respeito dos quais não seria justo ficar em silêncio. Há outros nomes e títulos que, no momento oportuno, também serão comentados aqui. Trata-se na verdade, digamos assim, de pôr o “trampo” em dia.

Circo mágico (Editora Projeto, 2007), de Alexandre Brito. Segundo os dados de catalogação, trata-se de uma obra de “literatura infantil” e de “poesia infantil”. O subtítulo do livro diz que são poemas “para gente pequena, média e grande”. Sigo a deixa do poeta, e leio Circo mágico às ganhas, ou seja, feito gente grande. Alexandre Brito pensa o grande no pequeno, e sabe que em poesia tudo se dá inapelavelmente na superfície rugosa da linguagem, inclusive o que, mais tarde, na recepção do leitor se derramará ou subirá, eventualmente, como erupção dos abismos mais escuros do espírito. Portanto, o poeta como re-apresentador do círculo (vicioso-virtuoso) da tradição e dos jogos de linguagem, prestidigitador de poemas, se mostra como o velho mestre sem cerimônias com relação àqueles significados e signos estagnados pelo uso repetitivo. Com efeito, tal como o tratador de animais que aparece a certa altura desse verdadeiro cineminha de animações verbais que é o Circo mágico, o poeta no que respeita às convenções discursivas “é um cara intratável”. 

Trabalhos do corpo (Letra Capital, 2007), de Sandro Ornellas. A impressão síntese que resta após o término da leitura do livro é a de que o poeta se houve muito bem com os desafios do verso longo e daquela poesia que opera dentro do subdiretório da tradição discursiva. Com efeito, a tradição a que me refiro, e à qual parece se filiar Sandro Ornellas — ao menos nessa obra —, é a do discursivo instaurado pela pós-modernidade; rosácea de referências estético-políticas. Wally Salomão em seus piores momentos é o poeta-tipo dessa algaravia pós-moderna: lábia resolvida em sumidouro de dicções alheias. Mas no atacado, gosto da poesia do baiano. Neste aspecto, a experiência de Sandro Ornellas, me parece, mais bem sucedida. Atento aos fracassos da tradição do citado subdiretório, o poeta de Trabalhos do corpo, soube se safar tanto da vaga neobarroca — cujo léxico é simbolista e retrô — quanto da mera falação de pendor tropicalista.

Play (Record, 2008), de Ricardo Silvestrin. Em sua estreia na prosa o poeta multipremiado se mostra seguro das belezas e dos riscos envolvidos no trato com o gênero. Felizmente, Silvestrin se concentra mais nas belezas do que nos riscos. Não que se mostre leniente com as redundâncias às vezes exigidas pela prosa. Ao contrário, o poeta, isto é, o prosador assimila essas características devolvendo-as de maneira renovada tanto ao leitor quanto aos seus pares, fazendo boa “prosa magra” — expressão que, certa vez, um detrator de Machado Assis usou para tentar diminuir a arte imbatível do mulato —, assim como Kafka e depois Borges o fizeram na consecução de suas obras. No quadro da prosa contemporânea Play dá um drible na torpeza esteticamente tolerável a que estamos quase que habituados no que se refere ao gênero.

Prosa do mar (7Letras, 2008), de Marlon de Almeida. A voz lírica se projeta sobre uma voz dramática que se esgarça. A remissão ao lirismo não edulcorado marca a presente recolha de poemas de Marlon de Almeida. A novidade de Prosa do mar repousa sobre uma particularidade: esse lirismo faz alusão, em parte, à moderna canção brasileira, isto é, se põe em relação com esta. Uma polifonia à maneira de Dorival Caymmi, narrativa em ondas de poemas. Vozes que se quebram na praia branca da página. E como muito bem lembrou Ronaldo Machado em análise ainda não publicada dedicada ao livro, na concha textual de Prosa do mar, ouvimos um eco valeriano, vale dizer, como o mar no Cemitério Marinho do poeta francês, a obra de Marlon de Almeida — esse poema na linha da prosa e de muitas vozes — se propõe como um discurso sempre recomeçado. Marlon compõe precisas cantigas d’amigo.

Para terminar, trecho de um poema deste resenhista parcial: “que outros podem o jardim ao soberano/ com a foice aqueles a quem a fortuna/ não quis foder...”. E bom proveito.

Comments

Anonymous said…
resenha inteligente. comparação corajosa (com o Wally, claro!) e certa. Sandro é um grande poeta.
Chequei aqui pela porta dos fundos da Cozinha do Cão.
Sou paulistana que já morou em Aracaju, depois passei um tempo por ái, em Poa e agora estou baiana. E os trabalhos do corpo de Sandro são um luxo!
Cândido Rolim said…
Ronald,
legal o comentário "pocket" sobre a fruição dessas figuras. para fechar o ano e abrir as portas. também andei lendo coisas boas, inclusive o Sandro. anotações feitas, para seguir o ano.
abração
Cândido.

Popular posts from this blog

de lambuja, um poema traduzido

Ivy G. Wilson Ayo A. Coly Introduction Callaloo Volume 30, Number 2, Spring 2007 Special Issue: Callaloo and the Cultures and Letters of the Black Diaspora.To employ the term diaspora in black cultural studies now is equal parts imperative and elusive. In the wake of recent forceful critiques of nationalism, the diaspora has increasingly come to be understood as a concept—indeed, almost a discourse formation unto itself—that allows for, if not mandates, modes of analysis that are comparative, transnational, global in their perspective. And Callaloo, as a journal of African Diaspora arts and letters, might justly be understood to have a particular relationship to this mandate. For this special issue, we have tried to assemble pieces where the phrase diaspora can find little refuge as a self-reflexive term—a maneuver that seeks to destabilize the facile prefigurations of the word in our current critical vocabulary, where its invocation has too often become idiomatic. More critically, we

antipoema para a literatura branca brasileira

  por uma literatura de várzea por uma literatura lavada de notas de pé de página por uma literatura sem seguidores por uma literatura não endogâmica por uma literatura infiel à realidade por uma literatura impertinente por uma literatura não poética por uma literatura que não capitule à noção de "obra", acúmulo de feitos por uma literatura que não seja o corolário de oficinas de escrita criativa por uma literatura que não sucumba à chapa de que o menos é mais por uma literatura desobediente ao mercado livreiro-editorial por uma literatura imprudente por uma literatura sem cacoetes, isto é, o oposto do que faz mia couto por uma literatura que não se confunda com o ativismo de facebook por uma literatura que não seja imprescindível por uma literatura sem literatos por uma literatura, como disse uma vez lezama, livre dos tarados protetores das letras por uma literatura sem mediadores de leitura por uma literatura não inspirada em filósofos fr

35 anos depois, poemas

[primeira redação: 1985; duas ou três alterações: 2020]   1 espelho verde não se sabe de onde parte a vontade do vento confins com os quais o vento confina   2 um paraíso entre uma ramagem e outra e uma outra e imagens que não se imaginam por isso um paraíso   3 marcolini amigo este cálix (quieto) este cálix é um breve estribrilho um confim um paraíso uma música uma náusea                                                                                                                   4 a brisa em pleno brilho vai-se sempiterno para o claro exceto que uma claridade sem margens abeira-nos da escuridão mais aguçada                                     5 copo onde a pedra da luz faísca pão solar gomo aberto vinácea e divina ipásia                                                6 quando as palavras se tornam escuras não é porque há algo de inefável nos objetos a que elas se referem há duas razões para que isso ocorra